Linhas de Cura

Luz Stella Rodríguez Cáceres
3 min readNov 1, 2021
Fotografia de Monica Araújo, tomada da página do Facebook "Linha do Rio"

Os sintomas eram queda de cabelo, capítulos de muita tristeza, cansaço, insônia e um coração que parecia se transbordar do peito causado física dor. Saí do consultório desnorteada, mas com um diagnóstico que continha todos esses sintomas inexplicáveis que me tinham colapsada sem causa física aparente. O Covid-19 tinha deixado sequelas emocionais que se juntaram a outras feridas da alma e a solução para o conjunto não se reduzia a good vibes, era também química.

Caminhei meditando com cada passo a palavra depressão, tentando que com o andar longo e rápido, rumo ao metro, eu pudesse espantar os pensamentos assombrados. Ao passar pela da Câmara Municipal na Cinelândia reparei que na escadaria tinha uns painéis de fundo preto onde se destacavam pequenos corações lilás e roxos de bordes costurados sobre um fundo preto. Quando me aproximei vi que se tratava de uma homenagem para as mais de 600.000 vítimas do Covid-19.

Comecei ler cada um dos diferentes slogans e palavras de justiça, memória e indignação escritas em panos costurados e bandeiras do Brasil em preto e branco. Logo veio um rapaz de celular em mãos, se apresentou explicando que o objetivo do coletivo era fazer um ato de memória e solidariedade com as famílias que perderam seres queridos na pandemia. Contou-me que o coletivo “Linhas do Rio” fazia bordados militantes nas praças da cidade, e nesse dia estava em vigília de acompanhamento à leitura e votação do relatório final da CPI do Covid-19 no Congresso Nacional. Ele se propunha me fazer uma entrevista sobre o trauma coletivo da pandemia e me perguntou o que sentimentos despertavam em mim esses estandarte, cheios de símbolos, retratos e frases alusivas.

Paralisei, não vieram palavras mas muitas lágrimas, o choro tomou conta de mim e entre soluços apenas pude falar _estou sem palavras. Uma parte de mim tinha se perdido no labirinto emaranhando da minha própria cabeça, perturbado ainda mais pela moldura política do momento, e ainda chorei mais, minha dor era pequena ao lado de tanta perda. Ao me ver em estado de choque o rapaz interrompeu a gravação e por bem me abraçou e soube pelo seu peito agitado que também chorava e nos abraçamos longamente, não sei precisar se foi um segundo ou se foi um século, mas foi eterno.

Fotografia de Monica Araújo, tomada da página do Facebook “Linha do Rio”

Ao reerguer a cabeça, ele me falou algo como _ pode colocar aí o nome! e me indicou com olhar uma barraquinha onde estavam varias mulheres em labor de costura, munidas de linhas, agulhas e tecidos. Senti-me perturbada, ele pegou minha mão e abrindo passo entre a multidão, me conduziu para a barraquinha e literalmente me entregou para o círculo das mulheres bordadeiras; ao verme confusa ofereceram-me uma cadeira. Elas insistiram _Qual é o nome? Ofuscada pronunciei o meu, que foi escrito num caderno. Recebi um copo de agua, palavras carinhosas de conforto acompanhadas por uma rosa de papel roxo e uma fita branca que tinha bordadas as palavras “Memória Não Morrerá”.

Não sei quanto tempo passou. Levantei-me e quando estava pronta para me despedir, me foi entregue uma outra fita, desta vez roxa. As letras bordadas em preto compunham meu nome, a mulher que me a entregou falou que podia colocá-la no painel da escadaria, ou podia levá-la comigo. Ainda falou _ seu nome não será esquecido! Ao entender que o nome pedido era o nome de um morto, as lágrimas voltaram com mais força. Era um equívoco? Ou era eu uma morta? Quis remediar a confusão, mas sem me deixar falar uma palavra as mulheres se levantaram e se fundiram comigo num grande abraço, todas choramos muito mais, apagando o incêndio no meu peito. Não tive duvida, a morta tinha que ser enterrada e a fita com meu nome de finada tinha que ser colocada ao lado dos que partiram. Eu estava viva e meu luto tinha que se transformar em verbo.

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Luz Stella Rodríguez Cáceres

Andarilha, In-disciplinada em Antropologia e Geografia. De língua bífida, transito entre o espanhol e o português, com um pé na ficção e outro na paisagem