Madalena: Da ausência à paisagem geometrizada do agronegócio

Luz Stella Rodríguez Cáceres
3 min readSep 26, 2022

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Madalena, o filme de Madiano Marcheti é o protagonismo da ausente. Madalena, salvo uma fugaz cena, não aparece na narrativa, não tem voz, nada se sabe do seu assassinato. Sem lágrimas não há luto, sem denúncia é um crime que se mantém invisível e sem investigação para não atrapalhar os planos políticos da campanha eleitoral; seu desaparecimento é encarado ora com indiferença, ora com resignação. Muito tem sido falado sobre os múltiplos silêncios que no filme gritam a transfobia no Brasil, e que na narrativa são um nó que não desata, um eterno suspense que se anuncia mas não conclui. Mas há um outro prisma pelo que se pode ler esse filme e é para esse que queria chamar a atenção. Madalena é também um filme sobre a paisagem. As planíssimas lavouras de soja, não são apenas o lugar onde o corpo de Madalena é largado, não é o pano de fundo para a história, mas o protagonista presente que fala mediante um impressionante manejo da fotografia a geométrica domesticação que o agro-capitalismo tem imposto no Mato Grosso do Sul.

A progressiva homogeneização da natureza e dos processos naturais dados mediante a o um modelo de produção agrícola que padroniza a produção de soja implica na estruturação de procedimentos e padrões de organização geral da produção dirigida ao controle dos processos naturais. Daí as cenas enjoativas da plantation que não acaba nunca e que vai até onde vista alcança. No plano vertical as emas transgridem a homogeneidade do plantio de soja, de pernas largas e pescoços extensos parecem ser as únicas com os pés no chão a poderem enxergar algum fim de linha possível naquela vastidão. A cena do filho do fazendeiro e os trabalhadores arrancando ervas “daninhas” fala desse controle exaustivo dos processos naturais sob a tutela do homem para atingir o máximo ganho em cada safra. Assim, esquadrinha-se o processo produtivo em ordens e lógicas gerenciáveis, mensuráveis e compatíveis em grande medida com tudo o que está a jusante e a montante no processo produtivo. Drones executam o papel da exatidão e da vigilância precisa. É onde está a conexão dessa monótona paisagem dos agroboys com o assassinato de uma mulher trans? Parece-me que à produção agrícola, aplica-se o mesmo padrão de inteligibilidade que simplifica e padroniza as relações sociais. Assim como as más ervas devem ser erradicadas dessa paisagem, são arrancadas da terra as vidas daquelas pessoas que fogem dos processos de padronização social, o desviante é matável. Enquanto meninas vestidas à moda cowboy dançam sertanejo no meio da plantation, meninos se bombam com anabolizantes para ficarem “monstros”. Quem sai do script social é basicamente eliminado. Os ovos das emas ocultos entre a soja são pisados, ninguém fica a salvo da máquina social aplanadora e podadora do intelecto e plantadora da vida vegetal insana.

No meio da platitude da soja uma moita indisciplinada sobressai. Um fragmento de floresta miraculosamente escapa da máquina devastadora de tratores e venenos. Nesse fragmento, quase um oásis _ deleitam-se as mulheres que não se encaixam nessa paisagem social, elas representam um tipo de paisagem feminina e também queer não disciplinada. Elas recusam tanto a forma quanto o conteúdo de cânones tradicionais, se aliam não com o rigor e a ordem patriarcal, mas com inspiração e imprevisibilidade. O matagal poderia ser a metáfora de pessoas e naturezas que fogem do padrão das formas e dos modos subjugados que brotam como erva daninha entre os moldes disciplinares, mas não é um filme sobre esperança; a antidisciplinaridade não é garantia de vida e paga-se com ela o desvio.

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Luz Stella Rodríguez Cáceres

Andarilha, In-disciplinada em Antropologia e Geografia. De língua bífida, transito entre o espanhol e o português, com um pé na ficção e outro na paisagem