Seguir as feras, o caminho dos sonhos.

Luz Stella Rodríguez Cáceres
6 min readApr 6, 2022

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Cortesia de @Desorientanda

Notas de campo costumam não sair à luz quando apresentamos os resultados finais das nossas pesquisas, especialmente aqueles fragmentos onde nossa subjetividade, medos e desejos afloram livres sem censura. Os sofrimentos psíquicos, físicos, as fortes emoções e o assombro dos sonhos fazem parte da obra de Nastassja Martin; porém esses elementos tão presentes em “Escute as Feras” — Croire aux fauves1, não fazem dele um diário de campo. Inicialmente as notas de campo da autora se dividiam entre o caderno diurno para descrições objetivas, diálogos e transcrições, e o caderno preto, virado para dentro, usado à noite para conteúdos mais íntimos e subjetivos, oníricos e fragmentários. O livro é a união de ambas perspectivas e tira da marginalidade editorial o famigerado diário de campo.

É difícil definir um gênero para o livro de Martin, ainda que tenha começado como um diário de campo, sua sublime elaboração o coloca mais perto da literatura, ou talvez algo entre etnografia, literatura e relato autobiográfico. Essa mistura faz dele uma bela e sensível peça de reflexão, deleite e agonia na tentativa de compreender as trajetórias dos mundos que se entrelaçam, não sem se chocar, quando a antropóloga francesa é atacada por um urso siberiano na Floresta de Tvaián nas montanhas de Kamtchátca. Depois do “acontecimento urso”, que atravessa as fronteiras corporais, psíquicas e culturais da autora, o caderno preto deixou de existir, ele se derramou, em palavras de Martin, pelos outros cadernos, acabando com a dualidade dentro/fora que a compunham para poder fabricar uma história polifônica tecida com os inúmeros fios que fizeram daquela experiência de campo uma tão densamente pessoal.

O encontro entre a antropóloga e o urso é a atualização do tempo mítico em carne própria; a experiência é tão liminar que é encarada por Nastassja como um nascimento, assistido por parteiras desse lado e doutores de jaleco branco deste outro lado. Tamanha saga torna seu corpo, literalmente, um campo de batalha dos saberes do cuidado. A quase morte é então um parto, o umbral que lhe permite explorar um dolorido caminho de autoconhecimento em intenso diálogo com as formas de ver e entender o mundo dos povos animistas do extremo Leste da Rússia como os evens e os gwich’in do Alaska. No processo, os sonhos cumprem um papel mediador, mas de interpretação esquiva e misteriosa, pois a revelação nunca é completa como nos velhos oráculos; os sonhos são o canal de comunicação escolhido pelos espíritos dos animais. A repetitiva presença onírica do urso lhe vale a Nastassja seu nome em even, mátukha que significa ursa.

Procurando entender o próprio e difícil caminho de ser e estar num mundo que desmorona dentro e fora, simultaneamente, a antropóloga se embrenha na fatídica expedição ao encontro do sonho que a persegue. Desenha-se assim a escolha mútua, o urso a perseguia, mas ela também o perseguia. É na descida do vulcão Kámien no maciço de Kliútchevskoi que o encontro se consuma. É uma luta, ninguém ganha, mas também ninguém morre, cada um, urso e mulher, perdeu um pouco de si e ficou com um tanto do outro. O combate foi uma troca simétrica não apenas de ferimentos, mas de olhares espelhados e mútuos reconhecimentos.

Do ponto de vista nativo, ao ver os olhos da Nastassja o urso viu o reflexo da sua própria alma, é por isso que ursos não suportam ver os olhos dos humanos. Naquele beijo que lhe fraturou o osso do maxilar, a antropóloga é marcada pelo urso. E na defesa, o urso é ferido pela mulher com um golpe de picareta. Ela também foi a fera do urso. Então ela devém miêdka, o que significa que daí para frente ela é metade humana, metade urso, e que os sonhos dela passaram a ser também os sonhos do urso. O produto dessa hibridação é um perigoso tabu para alguns, afinal não foi apenas a face da mulher a que foi metamorfoseada e subvertida, foi a sua própria identidade; de longe se trata de qualquer acontecimento.

O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontraram e as fronteiras entre os mundos implode. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade: o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter acontecido há mil anos. Somos apenas eu e esse urso no mundo contemporâneo, indiferente às nossas ínfimas trajetórias pessoais; mas é também o confronto arquetípico, é o homem cambaleante com o sexo ereto diante do bisão ferido no poço de Lascaux”(p. 97).

Muito mais que gastado clichê sobre como o campo transforma o pesquisador, “Escute as feras” é sobre levar até às últimas consequências ser afetado pelo campo através de uma experiência radical. Estarmos lendo sobre ela é consequência dessa afetação, escrever foi o resultado, mas também parte da travessia de cura. Ser afetado não se trata de uma operação de conhecimento por empatia, como nos lembra Favret-Saada (2005)2, mas de estar, de fato, no lugar do nativo bombardeado por intensidades específicas e experimentando no próprio corpo afetos que se expressam sem precisar da comunicação verbal. Sonhar é a prova máxima da afetação. É pelos sonhos de Nastassja que Dária, a nativa anfitriã, percebe as perturbações que as profundezas do tempo onírico acometem à antropóloga, o urso a escolheu e Dária o sabe.

Seguindo com Favret-Saada, ser afetado é conceder estatuto epistemológico a situações de comunicação não verbal involuntária e não intencional, mas também significa não ceder ao jogo da representação nem à mera simbologia como ferramentas de compreensão do dito mundo natural e dos não-humanos; o que implica mais em crer que em escutar. Se por um lado o imperativo embutido no “Escute” bem pode se referir à urgência de escutar o que as forças da natureza têm a dizer, a ação posta como ordem foge da tradução do verbo croire em francês que se define por considerar algo como verdadeiro. Sem provas visíveis para todos, crer é ter certeza na existência de algo porque teve efeito em nós.

Abro meu caderno preto, fico rabiscando até o dia nascer. Nessa noite, escrevo que é preciso acreditar nas feras, nos seus silêncios, em seu comedimento; acreditar nos sinais de alerta, nas paredes brancas e nuas, nos lençóis amarelos desse quarto de hospital; acreditar no retraimento que trabalha o corpo e a alma num não- lugar que conserva sua neutralidade e sua indiferença, sua transversalidade (p. 53).

O efeito do espelho é também a indagação impossível sobre esse outro, o urso ferido com sua trajetória, motivos e desejos no mundo; e que não deveria mais ser reduzido à lógica predatória, nem a um ator secundário, nem muito menos a mero reflexo do estado do espírito humano. Afinal, ainda que o ponto de vista do urso seja inacessível para muitos, nem tudo pode seguir girando em torno dos humanos.

Martin explora a fundo a reviravolta da viagem de campo, que na busca do outro termina no mergulho dentro de si. Sem comiseração ela é levada a explorar os aspectos profundos da sua dimensão emocional comocionada por interrogantes que buscam alguma resposta no retorno à Floresta de Tvaián. Para ela a cura deve ocorrer perto da floresta e daqueles que entendem as forças em jogo. O isolamento a deixa revisitar memórias e produzir inevitáveis comparações culturais e questionamentos vertiginosos sobre a alteridade, o humano e o natural.

É no silêncio que se pode voltar a sonhar. Foi assim que fizeram os evens após o colapso da URSS, se distanciar da civilização e voltar à floresta para permitir o florescimento dos sonhos e a atualização do tempo mítico. A viagem de Nastassja é motivada pelo querer estar perto daqueles que creem nas forças da natureza e sabem que elas agem e sentem. Trata-se de um mundo onde todos os seres escutam, observam, lembram e onde sonhar não é privilégio humano. Tal entendimento propõe o estabelecimento de outras fronteiras, menos inteligíveis, mas que mantém a promessa da vida íntegra respeitando seus ciclos e ritmos. Não em vão os capítulos do livro são as estações que ecoam nos estados da alma. O animismo tão comprometido com a vida questiona tanto a cosmologia do antropocentrismo, como os desejos de controle operacional e utilitarista do mundo aplicados por qualquer regime, empenhado em homogenizar e disciplinar a natureza para produzir e otimizar ganâncias.

“Escute as feras” é o tipo de livro que o leitor devora, não sem antes ser devorado por ele.

1 MARTIN, Nastassja. Escute as feras São Paulo: Editora 34, 2021

2 FAVRET-SAADA, Jeanne. “Être Afecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3–9. Tradução de Paula Siqueira disponível em Cadernos de Campo #13: 155–161, 2005

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Luz Stella Rodríguez Cáceres

Andarilha, In-disciplinada em Antropologia e Geografia. De língua bífida, transito entre o espanhol e o português, com um pé na ficção e outro na paisagem